" SE VIVERMOS E PREGARMOS O EVANGELHO COM A MESMA SIMPLICIDADE COM A QUAL ELE FOI VIVIDO E APRESENTADO POR JESUS AOS HOMENS, ELE CONTINUARÁ SENDO TRANSFORMADOR E EFICÁZ EM SEU EFEITO PRINCIPAL " - Parte 10

10/07/2013 11:22

C. S. Lewis

CRISTIANISMO PURO E SIMPLES

 

 

 

 

                                                                             PARTE 10

A CONCLUSÃO PRÁTICA

Cristo entregou-se à submissão e à humilhação per­feitas: perfeitas porque era Deus; submissão e humilha­ção porque era um homem. Ora, a crença dos cristãos está em que, se partilharmos de algum modo da humil­dade e do sofrimento de Cristo, partilharemos também do seu triunfo sobre a morte, encontraremos nova vida após a morte e nela seremos criaturas perfeitas e per­feitamente felizes. Isso implica bem mais que tentar se­guir seus ensinamentos. As pessoas se perguntam quando ocorrerá o próximo passo da evolução — um passo para além do próprio homem —, mas, segundo o cristianis­mo, esse passo já foi dado. Em Cristo, um novo homem surgiu; e o novo tipo de vida que começou nele deve ser instilado em nós.

Como isso pode ocorrer? Lembremo-nos, antes de mais nada, de como adquirimos a nossa forma ordiná­ria de vida. Recebemo-la de outras pessoas, de nossos pais e de todos os nossos ancestrais, independentemente de um consentimento nosso e mediante um processo muito curioso, que envolve o prazer, a dor e o perigo: um processo que nunca teríamos imaginado. A maioria das pessoas passa boa parte da infância tentando ima­ginar como a vida se originou, e, quando a resposta lhes é dada, de início não acreditam nela. Não as culpo por isso, já que é mesmo um processo bastante estranho. Ora, o Deus que criou esse processo é o mesmo que pla­neja como o novo tipo de vida — a vida de Cristo — será difundido. Não devemos nos surpreender se também esse processo for estranho. Assim como Deus não quis ouvir nossa opinião quando inventou o sexo, também não nos consultou a respeito dessa vida nova.

Há três coisas que infundem a vida de Cristo em nós: o batismo, a fé e essa ação misteriosa que os cristãos chamam por vários nomes — a Santa Ceia, a Eucaristia, a Ceia do Senhor. São esses três, pelo menos, os méto­dos mais comuns, o que não quer dizer que não haja casos especiais em que essa vida nos possa ser dada na ausência de um ou mais deles. Não tenho tempo para me deter nos casos especiais e não tenho conhecimento suficiente para fazê-lo. Se você tentar explicar para alguém, em poucos minutos, como chegar em Edimbur­go, dirá quais os trens que deve pegar. É claro que essa pessoa pode chegar à cidade de navio ou de avião, mas dificilmente você levantará essas opções. E não vou dizer coisa alguma sobre qual das três coisas citadas é a mais essencial. Meu amigo metodista queria que eu falasse mais a respeito da fé e menos a respeito das outras duas, mas não vou fazer isso. Qualquer um que pretenda en­sinar a doutrina cristã vai, sem dúvida, dizer que os três meios devem ser utilizados, e isso é suficiente para nos­sa finalidade imediata.

Eu mesmo não consigo entender como tais coisas podem nos conduzir ao novo tipo de vida. Mas até aí, se ninguém tivesse me dito nada a respeito da procria­ção, eu jamais teria estabelecido um nexo entre um certo prazer de ordem física e o nascimento de um novo ser humano no mundo. Temos de aceitar a realidade tal como ela se nos apresenta: não devemos fazer conside­rações vãs sobre como as coisas deveriam ser ou como esperaríamos que elas fossem. No entanto, mesmo sem saber por que as coisas são assim, posso lhes dizer por que acredito nisso, já expliquei por que sou obrigado a crer que Jesus era (e é) Deus. Ora, o fato de ele ter en­sinado a seus seguidores que a nova vida é transmitida dessa forma é tão claro para nós quanto qualquer ou­tro fato da história. Em outras palavras, acredito na autoridade dele. Não tenha medo da palavra "autorida­de". Se você acredita em algo por causa da autoridade de alguém significa apenas que você acredita porque a pessoa que lhe deu a informação é confiável. Noventa e nove por cento das coisas em que acreditamos são cri­das em função da autoridade de alguém. Acredito, por exemplo, que exista um lugar chamado Nova York, mesmo sem ter estado lá e mesmo sem conseguir pro­var sua existência pelo raciocínio abstrato. Acredito nisso porque pessoas confiáveis assim o garantem. O ho­mem comum acredita no sistema solar, nos átomos, na evolução e na circulação do sangue por causa da auto­ridade de alguém - porque os cientistas o afirmam. A única prova que temos de qualquer declaração históri­ca é também a autoridade. Nenhum de nós testemu­nhou a conquista normanda ou a derrota da Invencí­vel Armada. Nenhum de nós poderia provar pela lógica pura que essas coisas aconteceram como se pode pro­var uma equação matemática. Acreditamos nelas sim­plesmente porque algumas testemunhas deixaram relatos escritos a seu respeito: na verdade, acreditamos nelas por causa de uma autoridade. Um homem que demons­trasse ceticismo em relação à autoridade em outros as­suntos, como certas pessoas o fazem em relação à reli­gião, teria de se contentar com não saber absolutamen­te nada.

Não pense que estou apresentando o batismo, a fé e a Santa Ceia como substitutos do próprio esforço para imitar a Cristo. A vida natural é recebida de nossos pais, mas isso não significa que permaneceremos vivos sem fazer nada. Você pode perder a vida por negligência ou pode dar-lhe fim com o suicídio. Tem de alimentá-la e cuidar dela, sempre lembrando que não a criamos, mas simplesmente conservamos uma vida recebida de ter­ceiros. Do mesmo modo, o cristão pode perder a vida de Cristo que lhe foi infundida, e tem de fazer esforço para mantê-la. Porém, nem mesmo o melhor cristão que já existiu age por força própria - só pode nutrir ou pro­teger uma vida que jamais poderia ter sido adquirida por esforço pessoal. Disso decorrem certas conseqüên­cias práticas. Enquanto a vida natural anima o corpo, ela trabalha para conservar esse corpo. Quando ele so­fre um ferimento, pode, até certo ponto, cicatrizar, o que não ocorre com um corpo morto. O organismo vivo não se caracteriza por nunca se ferir, mas sim por ter um po­der, mesmo que limitado, de recuperação. Da mesma forma, o cristão não é um homem que nunca erra, mas um homem capaz de se arrepender, de levantar a cabe­ça e seguir em frente após cada queda. Ele é assim por­que a vida de Cristo está dentro dele, sempre pronta para recuperá-lo, habilitando-o a imitar (em certa medida) a morte voluntária que o próprio Cristo levou a cabo.

É por isso que o cristão se encontra numa situação diferente da de outras pessoas que tentam ser boas. Es­tas esperam, por ser boas, agradar a Deus, quando nele acreditam; ou, caso não acreditem, esperam pelo me­nos receber a aprovação dos homens bons. Já o cristão pensa que todo bem que faz advém da vida de Cristo que o anima interiormente. Não pensa que Deus nos amará mais por sermos bons, mas que Deus nos fará bons porque nos amou primeiro, do mesmo modo que o teto de uma estufa não atrai o sol por ser brilhante, mas brilha porque o sol irradia sobre ele.

Gostaria de deixar bem claro que, quando os cris­tãos dizem que a vida de Cristo está dentro deles, não se referem simplesmente a algo mental ou moral. Quan­do dizem que "estão em Cristo" ou que o Cristo "está neles", não é uma mera maneira de dizer que estão pen­sando em Cristo ou tentando imitá-lo. Querem dizer que Cristo opera de fato através deles; que a massa dos cristãos é o organismo físico pelo qual Cristo age — que nós somos seus dedos e músculos, as células de seu cor­po. E talvez isso explique algumas coisas. Explica por que essa nova vida nos é infundida não apenas median­te atos puramente mentais, como a fé, mas também me­diante atos corporais, como o batismo e a Santa Ceia. Não se trata simplesmente da difusão de uma idéia; an­tes, é como a evolução — um fato biológico ou superbiológico. Não vale a pena tentar ser mais espiritual do que o próprio Deus, que nunca teve a intenção de que fôssemos criaturas puramente espirituais. Esse é o mo­tivo pelo qual se vale de meios materiais como o pão e o vinho para infundir em nós essa nova vida. Há quem diga que esses meios são pouco refinados e desespiritualizados. Deus não acha: ele inventou o ato de comer. Ele gosta da matéria; afinal, foi ele mesmo que a inventou.

Eis outra coisa que me intrigava: não é terrivelmente injusto que essa vida nova só chegue às pessoas que ouvi­ram falar de Cristo e acreditaram nele? A verdade, porém, é que Deus não nos deixou a par de seus desígnios a res­peito das outras pessoas. O que sabemos é que nenhum homem pode ser salvo a não ser por meio de Cristo; ninguém nos disse que só os que o conhecem podem ser salvos por ele. Nesse ínterim, se você está preocupa­do com as pessoas de fora, a coisa menos insensata a fazer é permanecer de fora também. Os cristãos são o corpo de Cristo, o organismo através do qual ele trabalha. Cada acréscimo a esse corpo permite que ele trabalhe mais. Se você quer ajudar os que estão de fora, tem de acres­centar sua pequena célula ao corpo de Cristo, o único que pode ajudá-los. Decepar o dedo de um homem se­ria uma forma excêntrica de levá-lo a trabalhar mais.

Vamos a outra objeção possível. Por que Deus quis entrar sob disfarce neste mundo ocupado pelo inimigo, fundando uma espécie de sociedade secreta para minar o demônio? Por que não invade o território com força total? Será que ele não é forte o suficiente? Bem, os cristãos acreditam que Deus vai utilizar a força total; apenas não se sabe quando. Mas podemos adivinhar o porquê do atraso. Agindo assim, ele nos dá uma chan­ce de aderirmos à sua causa livremente. Não acho que você e eu teríamos em alta estima um francês que es­perasse os aliados marcharem Alemanha adentro para só então anunciar que estava do nosso lado. E certo que Deus vai invadir. Mas não sei se as pessoas que pedem que Deus interfira aberta e diretamente em nosso mun­do sabem exatamente o que estão pedindo. Quando ele fizer isso, será o fim do mundo. Quando o autor sobe ao palco, é porque a peça já terminou. A invasão divina vai acontecer, não há dúvida quanto a isso; mas o que vamos ganhar se só então anunciarmos que estávamos do lado dele? De que nos valerá isso quando o univer­so se dissolver como um sonho e algo até então incon­cebível para nossa mente sobrevier com estrépito — algo tão magnífico para alguns e tão terrível para outros? De que isso nos valerá quando não pudermos mais escolher? Dessa vez, Deus se apresentará sem disfarce, e virá com tamanho poder que causará em cada criatura um amor irresistível ou um irresistível horror. Será tarde demais, então, para escolher um dos lados. Quando não é mais possível ficar em pé, de nada adianta você dizer que de­cidiu ficar deitado. Aquele não será o tempo das esco­lhas, mas sim da revelação do lado a que pertencíamos, tivéssemos consciência disso ou não. Hoje, agora, nes­te momento, temos a oportunidade de escolher o lado correto. Deus tarda a aparecer para nos dar essa chance, que não durará para sempre. E pegar ou largar.