" SE VIVERMOS E PREGARMOS O EVANGELHO COM A MESMA SIMPLICIDADE COM A QUAL ELE FOI VIVIDO E APRESENTADO POR JESUS AOS HOMENS, ELE CONTINUARÁ SENDO TRANSFORMADOR E EFICÁZ EM SEU EFEITO PRINCIPAL " - Parte 2

15/05/2013 09:35

                                                                                            C. S. Lewis

                                                                       CRISTIANISMO PURO E SIMPLES

                                                                                               Parte 2

2. ALGUMAS OBJEÇÕES

Se essas duas ideias são nosso fundamento, é me­lhor que eu deixe esse fundamento bem firme antes de seguir em frente. Algumas das cartas que recebi mostram que um grande número de pessoas tem dificuldade para compreender o que significa essa Lei da Natureza Huma­na, ou Lei Moral, ou Regra de Bom Comportamento.

Certas pessoas, por exemplo, me escreveram per­guntando: "Isso que você chama de Lei Moral não é simplesmente o nosso instinto gregário? Será que ele não se desenvolveu como todos os nossos outros instin­tos?" Não vou negar que possuímos esse instinto, mas não é a ele que me refiro quando falo em Lei Moral. To­dos nós sabemos o que é ser movido pelo instinto — pelo amor materno, o instinto sexual ou o instinto da alimentação: sentimos o forte desejo ou impulso de agir de determinada maneira. E é claro que, às vezes, sentimos o desejo intenso de ajudar outra pessoa. Isso se deve, sem dúvida, ao instinto gregário. No entanto, sentir o desejo intenso de ajudar é bem diferente de sentir a obri­gação imperiosa de ajudar, quer o queiramos, quer não. Suponhamos que você ouça o grito de socorro de um homem em perigo. Provavelmente sentirá dois desejos: o de prestar socorro (que se deve ao instinto gregário) e o de fugir do perigo (que se deve ao instinto de auto-preservação). Mas você encontrará dentro de si, além desses dois impulsos, um terceiro elemento, que lhe man­dará seguir o impulso da ajuda e suprimir o impulso da fuga. Esse elemento, que põe na balança os dois instin­tos e decide qual deles deve ser seguido, não pode ser nenhum dos dois. Você poderia pensar também que a partitura musical, que lhe manda, num determinado momento, tocar tal nota no piano e não outra, é equi­valente a uma das notas no teclado. A Lei Moral nos informa da melodia a ser tocada; nossos instintos são meras teclas.

Há outra maneira de perceber que a Lei Moral não é simplesmente um de nossos instintos. Se existe um conflito entre dois instintos e, na mente dessa criatura, não há mais nada além desses instintos, é óbvio que o instinto mais forte tem de prevalecer. Porém, nos momentos em que enxergamos a Lei Moral com maior cla­reza, ela geralmente nos aconselha a escolher o impulso mais fraco. Provavelmente, seu desejo de ficar a salvo é maior do que o desejo de ajudar o homem que se afoga, mas a Lei Moral lhe manda ajudá-lo, apesar dos pesares. E, em geral, ela nos manda tomar o impulso correto e tentar torná-lo mais forte do que originalmente era - não é mesmo? Ou seja, sentimos que temos o dever de es­timular nosso instinto gregário, por exemplo, despertan­do a imaginação e estimulando a piedade, entre outras coisas, para termos força para agir corretamente na hora certa. E evidente, porém, que, no momento em que de­cidimos tornar mais forte um instinto, nossa ação não é instintiva. Aquilo que lhe diz: "Seu instinto está ador­mecido, desperte-o!", não pode ser o próprio instinto. O que lhe manda tocar tal nota no piano não pode ser a própria nota.

Há ainda uma terceira maneira de ver a Lei Moral. Se ela fosse um de nossos instintos, seríamos capazes de identificar dentro de nós um impulso que sempre pu­déssemos chamar de "bom" segundo a regra da boa con­duta. Mas isso não acontece. Não existe nenhum impul­so que às vezes a Lei Moral não nos aconselhe a inibir, nem outro que ela não nos encoraje a praticar de vez em quando. E um erro achar que alguns de nossos impul­sos, como o amor materno e o patriotismo, são bons, e outros, como o instinto sexual e a agressividade, são maus. Tudo o que queremos dizer é que existem mais situações em que o instinto de luta e o desejo sexual de­vem ser contidos do que situações em que devemos con­ter o amor materno e o patriotismo. No entanto, em certas ocasiões, é dever do homem casado encorajar seu impulso sexual, e do soldado fomentar sua agressividade. Existem também oportunidades em que a mãe deve re­frear o amor pelo filho, ou um homem deve conter o amor por seu país, para que não cometam injustiça con­tra outras crianças ou outros países. A rigor, não existem impulsos bons e impulsos maus. Voltemos ao piano. Não há nele dois tipos de notas, as "certas" e as "erradas". Cada uma das notas é certa para uma determinada oca­sião e errada para outra. A Lei Moral não é um instin­to particular ou um conjunto de instintos; é como um maestro que, regendo os instintos, define a melodia que chamamos de bondade ou boa conduta.

Este tema, aliás, tem grandes consequências práti­cas. A coisa mais perigosa que podemos fazer é tomar um certo impulso de nossa natureza como critério a ser seguido custe o que custar. Não existe um único im­pulso que, erigido em padrão absoluto, não tenha o po­der de nos transformar em demónios. Talvez você pense que o amor pela humanidade em geral é livre de peri­gos, mas isso não é verdade. Se deixarmos de lado o senso de justiça, logo estaremos violando acordos e falsifican­do provas judiciais em prol do "bem da humanidade". Teremos então nos tornado homens cruéis e desleais.

Outras pessoas me escreveram perguntando: "Isso que você chama de Lei Moral não é somente uma con­venção social, algo que nos foi incutido pela nossa edu­cação?" Acredito que essas pessoas incorrem num mal-entendido. Elas tomam por pressuposto que, se apren­demos alguma regra de nossos pais e professores, essa regra é uma simples invenção humana. Mas é evidente que isso não é verdade. Todos aprendemos a tabuada na escola. Uma criança que crescesse sozinha numa ilha deserta não a aprenderia. Mas salta à vista que a tabuada não é apenas uma convenção humana, algo que os seres humanos fizeram para si e que poderiam ter feito diferen­te se assim quisessem. Concordo plenamente que apren­demos a Regra de Boa Conduta dos pais e professores, dos amigos e dos livros, assim como aprendemos todas as ou­tras coisas. Porém, certas coisas que aprendemos são me­ras convenções que poderiam ser diferentes - aprendemos a manter-nos à direita na estrada, mas a regra poderia ser manter-se à esquerda -, e outras coisas, como a matemá­tica, são verdades. A pergunta a ser feita é a qual das duas classes pertence a Lei da Natureza Humana.

Há duas razões para afirmar que ela pertence à mes­ma classe que a da matemática. A primeira, expressa no primeiro capítulo, é que, apesar de haver diferenças en­tre as ideias morais de certa época ou país e as de outros tempos ou lugares, essas diferenças, na realidade, não são muito grandes - nem de longe são tão importantes quanto a maioria das pessoas imaginam -, e, assim, pode­mos reconhecer a mesma lei dentro de todas elas; ao passo que as meras convenções, como o sentido do trân­sito ou os tipos de vestimenta, diferem largamente. A segunda razão é a seguinte: quando você considera as diferenças morais entre um povo e outro, não pensa que a moral de um dos dois é sempre melhor ou pior que a do outro?

Será que as mudanças que se constatam en­tre elas não foram mudanças para melhor? Caso a res­posta seja negativa, então está claro que nunca houve um progresso moral. O progresso não significa apenas uma mudança, mas uma mudança para melhor. Se um conjunto de ideias morais não fosse melhor do que ou­tro, não haveria sentido em preferir a moral civilizada à moral bárbara, ou a moral cristã à moral nazista.

E pon­to pacífico que a moralidade de alguns povos é melhor que a de outros. Acreditamos também que certas pes­soas que tentaram mudar os conceitos morais de sua época foram o que chamaríamos de Reformadores ou Pioneiros - pessoas que entenderam melhor a moral do que seus contemporâneos. Pois muito bem. No momen­to em que você diz que um conjunto de ideias morais é superior a outro, está, na verdade, medindo-os ambos segundo um padrão e afirmando que um deles é mais conforme a esse padrão que o outro. O padrão que os mede, no entanto, difere de ambos. Você está, na rea­lidade, comparando as duas coisas com uma Moral Ver­dadeira e admitindo que existe algo que se pode chamar de O Certo, independentemente do que as pessoas pen­sam; e está admitindo que as ideias de alguns povos se aproximaram mais desse Certo que as ideias de outros povos. Ou, em outras palavras: se as suas noções mo­rais são mais verdadeiras que as dos nazistas, deve exis­tir algo - uma Moral Verdadeira — que seja o objeto a que essa verdade se refere. A razão pela qual sua con­cepção de Nova York pode ser mais verdadeira ou mais falsa que a minha é que Nova York é um lugar real, cuja existência independe do que eu ou você pensamos a seu respeito. Se, quando mencionássemos Nova York, tudo o que pensássemos fosse "a cidade que existe na minha cabeça", como é que um de nós poderia estar mais pró­ximo da verdade do que o outro? Não haveria medida de verdade ou de falsidade. Do mesmo modo, se a Re­gra da Boa Conduta significasse simplesmente "tudo que cada povo aprova", não haveria sentido em dizer que uma nação está mais correta do que a outra, nem que o mun­do se torna moralmente melhor ou pior.

Concluo, portanto, que, apesar de as diferenças de ideias a respeito da Boa Conduta nos levarem a suspeitar de que não existe uma verdadeira Lei de Conduta natural, as coisas que estamos naturalmente propensos a pensar provam justamente o contrário. Algumas pala­vras antes de terminar: conheci pessoas que exageraram essas diferenças, por terem confundido as diferenças mo­rais com as meras diferenças de crença a respeito dos fa­tos. Por exemplo, um horíiem me perguntou certa vez: 'Trezentos anos atrás, as bruxas na Inglaterra eram quei­madas na fogueira. E isso que você chama de Regra da Natureza Humana ou de Boa Conduta?" Mas é claro que a razão pela qual não se executam mais bruxas hoje em dia é que não acreditamos que elas existam. Se acre­ditássemos - se realmente pensássemos que existem pessoas entre nós que venderam a alma para o diabo, receberam em troca poderes sobrenaturais e usaram es­ses poderes para matar ou enlouquecer os vizinhos, ou para provocar calamidades naturais —, certamente con­cordaríamos que, se alguém merecesse a pena de morte, seriam essas sórdidas traidoras. Não há aqui uma dife­rença de princípios morais, apenas de enfoque dos fatos. Pode ser que o fato de não acreditarmos em bruxas seja um grande avanço do conhecimento, mas não existe avanço moral algum em deixar de executá-las quando pensamos que elas não existem. Não consideraríamos misericordioso um homem que não armasse ratoeiras por não acreditar que houvesse ratos na casa.