" SE VIVERMOS E PREGARMOS O EVANGELHO COM A MESMA SIMPLICIDADE COM A QUAL ELE FOI VIVIDO E APRESENTADO POR JESUS AOS HOMENS, ELE CONTINUARÁ SENDO TRANSFORMADOR E EFICÁZ EM SEU EFEITO PRINCIPAL " - Parte 27
C. S. Lewis
CRISTIANISMO PURO E SIMPLES
Parte 27
DUAS NOTAS
A fim de evitar mal-entendidos, resolvi acrescentar notas a duas questões suscitadas pelo capítulo anterior:
(1) Um crítico bastante sensato me perguntou por que, se Deus queria que fôssemos seus filhos e não "soldadinhos de brinquedo", ele não gerou muitos filhos desde o começo em vez de criar bonequinhos e depois dar-lhes vida por meio de um processo tão difícil e doloroso. Uma parte da resposta é bastante fácil; a outra provavelmente está acima da compreensão humana. Vamos à parte fácil: o processo de transformação do homem de criatura em filho não seria difícil nem doloroso se a raça humana não tivesse se afastado de Deus séculos atrás.
O homem pôde afastar-se porque Deus lhe deu o livre-arbítrio; e Deus deu-lhe o livre-arbítrio porque um mundo de meros autômatos não poderia conhecer o amor e, portanto, não poderia tampouco conhecer a felicidade infinita. Agora a parte difícil: todos os cristãos concordam em que, no sentido pleno e original da palavra, só existe um "Filho de Deus". Se insistirmos em perguntar "Não poderia ter havido muitos?", nos veremos entranhados num mistério profundo. Será que as palavras "poderia ter havido" têm algum sentido quando aplicadas a Deus? Podemos dizer que uma coisa finita "poderia ter sido" diferente do que é, e podemos dizê-lo porque ela efetivamente teria sido diferente se uma outra coisa também tivesse sido diferente; e esta outra coisa teria sido diferente se uma terceira coisa também o tivesse sido, e assim por diante. (As letras que compõem esta página teriam sido vermelhas se o tipógrafo tivesse usado tinta vermelha, e ele teria usado tinta vermelha se o chefe da gráfica o tivesse mandado fazê-lo, e por aí afora.) Mas, quando falamos a respeito de Deus — a respeito do Fato irredutível do qual todos os outros dependem e no qual se sedimentam -, é absurdo perguntar se as coisas poderiam ter se dado de outra maneira. Com Deus, as coisas são o que são, e fim da história. Mesmo sem levar isso em conta, encontro um problema na própria idéia de o Pai gerar muitos filhos desde toda a eternidade. Para que houvesse muitos filhos, eles teriam de ser diferentes uns dos outros. Duas moedas de um penny têm o mesmo formato. Como podem ser duas? Ora, ocupando posições diferentes no espaço e contendo átomos diferentes. Em outras palavras, para concebê-las como distintas entre si, tivemos de introduzir os conceitos de espaço e matéria; na verdade, tivemos de introduzir toda a "natureza", o universo criado. Posso compreender a diferença entre Pai e Filho sem utilizar os conceitos de espaço e a matéria, porque um gera e o outro é gerado. A relação do Pai com o Filho não é idêntica à relação do Filho com o Pai. Porém, se houvesse muitos filhos, todos teriam a mesma relação entre si e a mesma relação com o Pai. Como difeririam entre si? Essa dificuldade não se evidencia de imediato. De início, imagino que sou capaz de conceber a idéia de diversos "filhos". Mas, quando me ponho a pensar, constato que isso só é possível porque os imagino vagamente como figuras humanas reunidas numa espécie qualquer de espaço. Em outras palavras, embora quisesse pensar em algo que existia antes que o universo fosse criado, introduzi aí, inadvertidamente, a idéia do universo físico e coloquei dentro dela esse algo. Quando paro de fazer isso e ainda assim tento pensar no Pai gerando muitos filhos "antes de todos os mundos", vejo que, na realidade, não estou pensando em nada. A idéia se desvanece em meras palavras. (Será que a natureza — o espaço, o tempo e a matéria — foi criada precisamente a fim de tornar possível a multiplicidade? Será que, para haver uma multidão de espíritos eternos, não é preciso antes fazer muitas criaturas naturais, num universo, para depois espiritualizá-las? E claro que tudo isso são especulações.)
(2) A idéia de que toda a raça humana é, em certo sentido, um único corpo - um imenso organismo, como uma árvore - não deve ser confundida com a noção de que as diferenças individuais não importam ou que as pessoas reais, como Tom, Nobby e Kate, são menos importantes que entes coletivos como classes, raças etc. Na verdade, as duas idéias são opostas. Os órgãos que compõem um organismo são muito diferentes uns dos outros; já os entes que não formam um organismo podem ser bastante parecidos. Seis moedas de um penny são totalmente separadas, mas bastante semelhantes; meu nariz e meu pulmão são completamente diferentes, mas só estão vivos porque fazem parte do meu corpo e partilham uma vida comum. O cristianismo não concebe os indivíduos humanos como meros membros de um grupo, ou itens numa lista, mas como órgãos num corpo - uns diferentes dos outros, e cada qual oferecendo uma contribuição própria e insubstituível. Quando você se flagrar tentando transformar seus filhos, alunos ou até vizinhos em pessoas exatamente iguais a você, lembre-se de que Deus provavelmente não quis que eles fossem assim. Você e eles são órgãos diferentes, com finalidades diferentes. Por outro lado, quando você se sentir tentado a não se incomodar com os problemas de alguém porque eles "não lhe dizem respeito", lembre-se de que, apesar de essa pessoa ser diferente de você, ela faz parte do mesmo organismo. Se esquecer esse fato, você se tornará um individualista. Se, por outro lado, esquecer que ela é um órgão diferente, quiser suprimir as diferenças e fazer todas as pessoas iguais, tornar-se-á um totalitário. O cristão não deve ser nem uma coisa nem outra. Sinto o forte desejo de lhe dizer — e acho que você sente a mesma coisa — qual dos dois erros é o pior. Essa é a estratégia do diabo para nos pegar. Ele sempre envia ao mundo erros aos pares — pares de opostos. E sempre nos estimula a desperdiçar um tempo precioso na tentativa de adivinhar qual deles é o pior. Sabe por quê? Ele usa o fato de você abominar um deles para levá-lo aos poucos a cair no extremo oposto; Mas não nos deixemos enganar. Temos de manter os olhos fixos em nosso objetivo, que está bem à nossa frente, e passar reto no meio de ambos os erros. Nem um nem outro nos interessam.

