" SE VIVERMOS E PREGARMOS O EVANGELHO COM A MESMA SIMPLICIDADE COM A QUAL ELE FOI VIVIDO E APRESENTADO POR JESUS AOS HOMENS, ELE CONTINUARÁ SENDO TRANSFORMADOR E EFICÁZ EM SEU EFEITO PRINCIPAL " - Parte 27

06/11/2013 11:15

C. S. Lewis

CRISTIANISMO PURO E SIMPLES

Parte 27

DUAS NOTAS

A fim de evitar mal-entendidos, resolvi acrescentar notas a duas questões suscitadas pelo capítulo anterior:

(1) Um crítico bastante sensato me perguntou por que, se Deus queria que fôssemos seus filhos e não "sol­dadinhos de brinquedo", ele não gerou muitos filhos desde o começo em vez de criar bonequinhos e depois dar-lhes vida por meio de um processo tão difícil e do­loroso. Uma parte da resposta é bastante fácil; a outra provavelmente está acima da compreensão humana. Va­mos à parte fácil: o processo de transformação do ho­mem de criatura em filho não seria difícil nem doloroso se a raça humana não tivesse se afastado de Deus séculos atrás.

O homem pôde afastar-se porque Deus lhe deu o livre-arbítrio; e Deus deu-lhe o livre-arbítrio porque um mundo de meros autômatos não poderia conhecer o amor e, portanto, não poderia tampouco conhecer a felicidade infinita. Agora a parte difícil: todos os cris­tãos concordam em que, no sentido pleno e original da palavra, só existe um "Filho de Deus". Se insistirmos em perguntar "Não poderia ter havido muitos?", nos vere­mos entranhados num mistério profundo. Será que as palavras "poderia ter havido" têm algum sentido quan­do aplicadas a Deus? Podemos dizer que uma coisa finita "poderia ter sido" diferente do que é, e podemos dizê-lo porque ela efetivamente teria sido diferente se uma outra coisa também tivesse sido diferente; e esta outra coisa teria sido diferente se uma terceira coisa tam­bém o tivesse sido, e assim por diante. (As letras que compõem esta página teriam sido vermelhas se o tipógrafo tivesse usado tinta vermelha, e ele teria usado tin­ta vermelha se o chefe da gráfica o tivesse mandado fazê-lo, e por aí afora.) Mas, quando falamos a respeito de Deus — a respeito do Fato irredutível do qual todos os outros dependem e no qual se sedimentam -, é ab­surdo perguntar se as coisas poderiam ter se dado de ou­tra maneira. Com Deus, as coisas são o que são, e fim da história. Mesmo sem levar isso em conta, encontro um problema na própria idéia de o Pai gerar muitos fi­lhos desde toda a eternidade. Para que houvesse muitos filhos, eles teriam de ser diferentes uns dos outros. Duas moedas de um penny têm o mesmo formato. Como podem ser duas? Ora, ocupando posições diferentes no espaço e contendo átomos diferentes. Em outras pala­vras, para concebê-las como distintas entre si, tivemos de introduzir os conceitos de espaço e matéria; na ver­dade, tivemos de introduzir toda a "natureza", o univer­so criado. Posso compreender a diferença entre Pai e Fi­lho sem utilizar os conceitos de espaço e a matéria, por­que um gera e o outro é gerado. A relação do Pai com o Filho não é idêntica à relação do Filho com o Pai. Po­rém, se houvesse muitos filhos, todos teriam a mesma relação entre si e a mesma relação com o Pai. Como di­feririam entre si? Essa dificuldade não se evidencia de imediato. De início, imagino que sou capaz de conce­ber a idéia de diversos "filhos". Mas, quando me ponho a pensar, constato que isso só é possível porque os ima­gino vagamente como figuras humanas reunidas numa espécie qualquer de espaço. Em outras palavras, embora quisesse pensar em algo que existia antes que o univer­so fosse criado, introduzi aí, inadvertidamente, a idéia do universo físico e coloquei dentro dela esse algo. Quan­do paro de fazer isso e ainda assim tento pensar no Pai gerando muitos filhos "antes de todos os mundos", vejo que, na realidade, não estou pensando em nada. A idéia se desvanece em meras palavras. (Será que a natureza — o espaço, o tempo e a matéria — foi criada precisamente a fim de tornar possível a multiplicidade? Será que, para haver uma multidão de espíritos eternos, não é preciso antes fazer muitas criaturas naturais, num universo, para depois espiritualizá-las? E claro que tudo isso são especulações.)

 

(2) A idéia de que toda a raça humana é, em certo sentido, um único corpo - um imenso organismo, como uma árvore - não deve ser confundida com a noção de que as diferenças individuais não importam ou que as pessoas reais, como Tom, Nobby e Kate, são menos im­portantes que entes coletivos como classes, raças etc. Na verdade, as duas idéias são opostas. Os órgãos que com­põem um organismo são muito diferentes uns dos ou­tros; já os entes que não formam um organismo podem ser bastante parecidos. Seis moedas de um penny são totalmente separadas, mas bastante semelhantes; meu nariz e meu pulmão são completamente diferentes, mas só estão vivos porque fazem parte do meu corpo e par­tilham uma vida comum. O cristianismo não concebe os indivíduos humanos como meros membros de um grupo, ou itens numa lista, mas como órgãos num cor­po - uns diferentes dos outros, e cada qual oferecendo uma contribuição própria e insubstituível. Quando você se flagrar tentando transformar seus filhos, alunos ou até vizinhos em pessoas exatamente iguais a você, lembre-se de que Deus provavelmente não quis que eles fos­sem assim. Você e eles são órgãos diferentes, com fina­lidades diferentes. Por outro lado, quando você se sentir tentado a não se incomodar com os problemas de alguém porque eles "não lhe dizem respeito", lembre-se de que, apesar de essa pessoa ser diferente de você, ela faz par­te do mesmo organismo. Se esquecer esse fato, você se tornará um individualista. Se, por outro lado, esquecer que ela é um órgão diferente, quiser suprimir as diferen­ças e fazer todas as pessoas iguais, tornar-se-á um totali­tário. O cristão não deve ser nem uma coisa nem outra. Sinto o forte desejo de lhe dizer — e acho que você sente a mesma coisa — qual dos dois erros é o pior. Essa é a estratégia do diabo para nos pegar. Ele sempre envia ao mundo erros aos pares — pares de opostos. E sempre nos estimula a desperdiçar um tempo precioso na tenta­tiva de adivinhar qual deles é o pior. Sabe por quê? Ele usa o fato de você abominar um deles para levá-lo aos poucos a cair no extremo oposto; Mas não nos deixemos enganar. Temos de manter os olhos fixos em nosso obje­tivo, que está bem à nossa frente, e passar reto no meio de ambos os erros. Nem um nem outro nos interessam.