" SE VIVERMOS E PREGARMOS O EVANGELHO COM A MESMA SIMPLICIDADE COM A QUAL ELE FOI VIVIDO E APRESENTADO POR JESUS AOS HOMENS, ELE CONTINUARÁ SENDO TRANSFORMADOR E EFICÁZ EM SEU EFEITO PRINCIPAL " - Parte 28

13/11/2013 12:05

 

C. S. Lewis

CRISTIANISMO PURO E SIMPLES

Parte 28  

O Divino Fingimento

Peço licença ao leitor para iniciar novamente o ca­pítulo com duas imagens, ou histórias. Uma das histórias você já deve ter lido; chama-se A Bela e a Fera. Você há de se lembrar que a garota, por alguma razão, tem de se casar com o monstro. Depois de casada, beija-o como a um homem e então, para seu alívio, ele se torna um rapaz e eles vivem felizes para sempre. A segunda his­tória é sobre uma pessoa que teve de usar uma máscara, uma máscara que a tornava muito mais bonita do que era de fato. Teve de usá-la por anos a fio. Quando final­mente a tirou, descobriu que sua face tinha se adapta­do, crescido e se tornado igual à máscara. Assim, se tor­nara muito bonita. O que começara como um disfarce terminou como a própria realidade. Tenho a impressão de que ambas as histórias podem ajudar a ilustrar (den­tro dos limites da fantasia, é claro) o que tenho a dizer neste capítulo. Até aqui, tentei descrever fatos - o que é Deus e o que ele fez. Agora, gostaria de passar para a prática - o que fazer a seguir. Qual a importância de toda essa Teologia? Ela pode começar a ter importância hoje à noite. Se você teve interesse suficiente para ler o livro até aqui, provavelmente terá interesse suficiente para fazer suas orações à noite; e, quaisquer que sejam essas orações, uma delas certamente será o Pai-nosso.

Suas primeiras palavras são justamente essas, Pai nos­so. Você percebe, por acaso, o que elas significam? Sig­nificam, na verdade, que você se põe na posição de um filho de Deus. Sem meias-palavras, é como se você se fan­tasiasse de Cristo. Você finge. Porque é evidente que, no momento em que se dá conta do significado das pala­vras, você percebe que não é um filho de Deus. Não é um ser como o Filho de Deus, cuja vontade e cujos in­teresses estavam em uníssono com os do Pai: é um feixe de medos egocêntricos, de esperanças vãs, de cobiça, de ciúmes, de vaidade, fadados à morte. Sob um certo pon­to de vista, portanto, fantasiar-se de Cristo é uma tre­menda desfaçatez. O estranho nisso tudo é que ele or­denou que agíssemos assim.

Por quê? Qual a vantagem de fingir ser o que não somos? Bem, na esfera humana existem dois tipos de fingimento. Existe um ruim, em que o fingir toma o lu­gar da própria coisa, como quando um homem diz que vai nos ajudar, mas não ajuda. Mas também existe um bom, quando o fingimento nos leva à realidade. Quan­do você não está se sentindo muito amigável, mas sabe que deveria sê-lo, em geral a melhor coisa a fazer é adotar modos agradáveis e se comportar como se fosse uma pessoa melhor do que realmente é. Em poucos minutos, como todos sabemos por experiência própria, passará a se sentir, de fato, mais amistoso. Com muita freqüên­cia, a única maneira de adquirir uma qualidade consis­te em comportar-se como se já a tivesse. E por isso que as brincadeiras infantis são tão importantes. As crianças fingem ser adultos - brincando de soldado e de dona-de-casa. Estão sempre retesando os músculos e afiando a inteligência, de modo que, fingindo ser adultos, aca­bam tornando-se adultos de verdade.

No momento em que você se dá por si e diz "Aqui estou, nos trajes de Cristo", é bem provável que vislum­bre de imediato algum modo pelo qual o fingimento possa deixar de ser tão fingido e se torne mais real. Fla­grará, por exemplo, diversos pensamentos passando pela sua mente, pensamentos que não deveriam ocorrer a um filho de Deus. Ora, pare de pensá-los. Ou senão per­ceberá que, em vez de estar orando, deveria estar na sala escrevendo uma carta ou ajudando sua esposa com a lou­ça. Ora, faça isso.

Você já entendeu o que está acontecendo. O pró­prio Cristo, Filho de Deus, que é homem (como você) e Deus (como seu Pai), está na verdade a seu lado e já desde aquele momento começa a transformar seu fin­gimento em realidade. Esta não é simplesmente uma maneira rebuscada de dizer que a sua consciência está lhe ditando o que fazer. Se você simplesmente pergun­tar à consciência o que deve fazer, terá uma resposta; se recordar que está sob as vestes de Cristo, terá outra res­posta bem diferente. Há uma porção de coisas que sua consciência não vai achar especialmente erradas (espe­cialmente coisas que passam pela sua cabeça), mas que você percebe de imediato que são inaceitáveis para quem faz um esforço sério para ser como o Cristo. Você não está mais pensando simplesmente em certo e errado; está tentando contrair a boa infecção de uma Pessoa. E uma atividade mais próxima da pintura de um quadro que da obediência a um código de regras. E o curioso é que, de um lado, ela é bem mais difícil que a obediência, mas, de outro, é muito mais fácil.

O verdadeiro Filho de Deus está ao seu lado. Ele está começando a transformar você em algo semelhante a ele. Está começando, por assim dizer, a "injetar" seu tipo de vida e pensamento, sua zoé, em você; está come­çando a transformar o soldadinho de chumbo num ho­mem vivo. A parte de você que não gosta disso é a par­te que ainda é feita de chumbo.

Alguns de vocês podem achar que isto está muito distante de suas experiências pessoais. Talvez digam: "Nunca senti a presença invisível de Cristo a meu lado me ajudando, mas várias vezes fui ajudado por outros se­res humanos." Mal comparando, é como a mulher que, na Primeira Guerra, disse que não se importava com uma possível carestia de pão, pois em sua casa só comiam tor­radas. Se não houver pão, não haverá torrada. Da mesma forma, sem a ajuda de Cristo, os outros seres humanos também não vão nos ajudar. Ele opera em nós de diver­sas maneiras: não apenas dentro dos limites do que cha­mamos de "vida religiosa", mas também por meio da na­tureza, do nosso próprio corpo, dos livros, às vezes inclu­sive mediante experiências que poderiam ser vistas (na hora em que ocorreram) como anticristãs. Quando um jovem que freqüenta a igreja de forma rotineira se dá conta de que realmente não acredita no cristianismo e pára de freqüentá-la - pressupondo que se trate de uma atitude honesta e sincera, e não de algo que ele faz só para aborrecer os pais -, o Espírito de Cristo está mais próxi­mo dele do que jamais esteve antes - pressupondo que tomou essa atitude de coração, e não para incomodar os seus pais. Porém, acima de tudo, Cristo opera em nós através dos outros seres humanos, e neles através de nós.

Os seres humanos são espelhos ou "portadores" de Cristo para os outros seres humanos. Às vezes, portadores inconscientes. A "boa infecção" pode ser transmiti­da até mesmo pelos que não foram infectados. Certas pessoas que não eram cristas me ajudaram a abraçar o cristianismo. Em geral, porém, são os que conhecem o Cristo que o levam às outras pessoas. Esse é o motivo pelo qual a Igreja é tão importante - o corpo inteiro dos cristãos, que revelam o Cristo uns aos outros. Pode-se dizer que, quando dois fiéis juntos seguem Jesus Cristo, o cristianismo não se fortalece apenas em dobro, com­parado ao tempo em que os dois o seguiam separados, mas sim dezesseis vezes.

Não se esqueça de uma coisa: é natural que uma criança de colo, a princípio, beba o leite do seio mater­no sem saber que quem lhe dá o leite é sua mãe. É igual­mente natural que vejamos o homem que nos ajuda sem perceber o Cristo por trás dele. Porém, não devemos permanecer bebês para sempre. Temos de crescer e re­conhecer o verdadeiro Doador. Seria loucura não fazer isso, pois, nesse caso, tudo o que nos restaria seria con­fiar apenas em seres humanos como nós, o que nos le­varia à decepção. Os melhores entre eles cometem er­ros, e todos estão fadados à morte. Devemos ser gratos a todas as pessoas que nos ajudaram, devemos honrá-las e amá-las. Mas nunca, nunca deposite toda a sua fé num ser humano, mesmo que seja a melhor e a mais sá­bia pessoa do mundo. Existe uma porção de coisas interessantes que você pode fazer com areia; mas não vá construir uma casa sobre ela.

Nesse ponto começamos a entender o que o Novo Testamento quer dizer quando assevera que os cristãos "nascem de novo", que "se revestem de Cristo", que Cris­to "é formado em nós" e que aos poucos passamos a "ter a mente de Cristo".

Devemos repelir a idéia de que tudo isso não pas­sa de uma forma figurada de dizer que o cristão é aquele que lê os ensinamentos de Cristo e os segue, como o homem comum que lê Platão ou Marx e tenta seguir o que eles disseram. O que o Novo Testamento pretende é bem mais que isso: que uma Pessoa real, o Cristo, aqui e agora, no aposento em que você ora, está fazen­do algo em você. E não se trata apenas de um homem bom que morreu há dois mil anos. Trata-se de um Ho­mem vivo, ainda tão homem quanto você e ainda tão divino quanto era quando criou o mundo, que realmen­te chega para interferir em seu eu mais profundo, para matar em você o homem velho e substituí-lo pelo tipo de alma que ele mesmo tem. No início, ele só faz isso em alguns momentos. Depois, por períodos mais pro­longados. Por fim, se tudo corre bem, transforma-o per­manentemente num ser de espécie diferente e nova, num pequeno Cristo, num ser que, à sua humilde maneira, possui a mesma espécie de vida que Deus, comungando de seu poder, de sua felicidade, do seu saber e de sua eter­nidade. E logo descobrimos duas outras coisas.

(1) Passamos a notar não apenas nossos atos peca­minosos particulares, mas nossa atitude pecaminosa em geral; ficamos incomodados não apenas com o que fazemos, mas com o que somos. Isso pode ser um pou­co difícil de compreender, e assim vou tentar explicá-lo a partir da minha experiência pessoal. Nas minhas ora­ções noturnas, quando tento contabilizar os pecados do dia, nove em dez vezes pequei contra a caridade: pelo acabrunhamento, pela irritação, pelo escárnio, pelo des­dém ou pelo destempero. A desculpa que surge de ime­diato em minha mente é que a provocação foi súbita e inesperada demais; fui pego com a guarda baixa, não tive tempo para me prevenir. Isso até pode servir como atenuante para aqueles atos particulares, que seriam mui­tíssimo piores se cometidos de forma deliberada e pre­meditada. Por outro lado, será que o que um homem faz quando é pego com a guarda baixa não é o melhor sinal de que tipo de homem ele é na realidade? Não é a verdade que sempre se evidencia quando o homem não tem tempo de vestir seu disfarce? Se existem ratos no porão, a melhor maneira de apanhá-los é entrando no local de sopetão. A entrada repentina não cria os ratos, apenas os impede de se esconder. Da mesma forma, a ra­pidez da provocação não faz de mim um homem mal-humorado; simplesmente mostra o quão mal-humora­do eu efetivamente sou. O porão está sempre cheio de ratos, mas, se chegamos fazendo barulho, eles têm tem­po de buscar um esconderijo antes de acendermos a luz. Pelo jeito, os ratos do ressentimento e da vingança mo­ram no porão da minha alma. Ora, esse porão não está ao alcance da minha vontade consciente. Posso contro­lar meus atos em certa medida, mas não tenho controle direto sobre meu temperamento. Se (como eu disse an­tes) o que mais importa é o que somos, não o que faze­mos - se, com efeito, o que fazemos é importante so­bretudo na medida em que revela o que somos -, a con­clusão inescapável a que chego é que a mudança mais urgente a que devo me submeter é uma mudança que meus esforços diretos e voluntários não podem realizar. Isso vale também para as minhas boas ações. Quantas delas foram praticadas pelos motivos corretos? Quan­tas foram feitas por medo do que os outros iriam pen­sar ou por desejo de me exibir? Quantas delas não sur­giram de uma espécie de teimosia ou senso de superio­ridade que, em circunstâncias diferentes, me levariam a cometer atos abomináveis? Não consigo, pelo esforço moral direto, dar motivos mais nobres às minhas ações. Depois dos primeiros passos na vida cristã, nos damos conta de que tudo o que realmente precisa mudar na alma só pode ser feito por Deus. E isso nos leva a algo que pode ter dado motivo a mal-entendidos na lingua­gem que usei até aqui.

 

(2) Quem me ouviu falar até agora deve ter ficado com a impressão de que somos nós que fazemos tudo. Na verdade, como é óbvio, é Deus que faz tudo. Nós, na melhor das hipóteses, permitimos que ele o faça. Num certo sentido, até mesmo o fingimento de que falamos é Deus quem o faz. O Deus tripessoal, por assim dizer, vê diante de si um animal humano egocêntrico, ganan­cioso, ressentido e rebelde. Mas diz: "Vamos fazer de conta que esta não é uma mera criatura, mas nosso fi­lho. Na medida em que é um homem, é como o Cristo, que se fez homem. Vamos fazer de conta que essa cria­tura também se parece com ele em espírito. Vamos tra­tá-la como se ela fosse o que não é. Vamos fingir tudo isso para que o fingido se torne o real." Deus olha para você como se você fosse um pequeno Cristo. O Cristo está de pé a seu lado para operar essa transformação em você. Sei que essa idéia de um divino faz-de-conta pode soar estranha num primeiro momento. Mas será ela tão estranha assim? Não é desse modo que as coisas mais elevadas sempre elevam as mais baixas? Para ensinar o bebê a falar, a mãe fala com ele como se ele pudesse en­tendê-la. Tratamos nossos cães como se fossem "quase humanos", e é por isso que eles realmente se tornam quase humanos no final.