" SE VIVERMOS E PREGARMOS O EVANGELHO COM A MESMA SIMPLICIDADE COM A QUAL ELE FOI VIVIDO E APRESENTADO POR JESUS AOS HOMENS, ELE CONTINUARÁ SENDO TRANSFORMADOR E EFICÁZ EM SEU EFEITO PRINCIPAL " - Parte 28
C. S. Lewis
CRISTIANISMO PURO E SIMPLES
Parte 28
O Divino Fingimento
Peço licença ao leitor para iniciar novamente o capítulo com duas imagens, ou histórias. Uma das histórias você já deve ter lido; chama-se A Bela e a Fera. Você há de se lembrar que a garota, por alguma razão, tem de se casar com o monstro. Depois de casada, beija-o como a um homem e então, para seu alívio, ele se torna um rapaz e eles vivem felizes para sempre. A segunda história é sobre uma pessoa que teve de usar uma máscara, uma máscara que a tornava muito mais bonita do que era de fato. Teve de usá-la por anos a fio. Quando finalmente a tirou, descobriu que sua face tinha se adaptado, crescido e se tornado igual à máscara. Assim, se tornara muito bonita. O que começara como um disfarce terminou como a própria realidade. Tenho a impressão de que ambas as histórias podem ajudar a ilustrar (dentro dos limites da fantasia, é claro) o que tenho a dizer neste capítulo. Até aqui, tentei descrever fatos - o que é Deus e o que ele fez. Agora, gostaria de passar para a prática - o que fazer a seguir. Qual a importância de toda essa Teologia? Ela pode começar a ter importância hoje à noite. Se você teve interesse suficiente para ler o livro até aqui, provavelmente terá interesse suficiente para fazer suas orações à noite; e, quaisquer que sejam essas orações, uma delas certamente será o Pai-nosso.
Suas primeiras palavras são justamente essas, Pai nosso. Você percebe, por acaso, o que elas significam? Significam, na verdade, que você se põe na posição de um filho de Deus. Sem meias-palavras, é como se você se fantasiasse de Cristo. Você finge. Porque é evidente que, no momento em que se dá conta do significado das palavras, você percebe que não é um filho de Deus. Não é um ser como o Filho de Deus, cuja vontade e cujos interesses estavam em uníssono com os do Pai: é um feixe de medos egocêntricos, de esperanças vãs, de cobiça, de ciúmes, de vaidade, fadados à morte. Sob um certo ponto de vista, portanto, fantasiar-se de Cristo é uma tremenda desfaçatez. O estranho nisso tudo é que ele ordenou que agíssemos assim.
Por quê? Qual a vantagem de fingir ser o que não somos? Bem, na esfera humana existem dois tipos de fingimento. Existe um ruim, em que o fingir toma o lugar da própria coisa, como quando um homem diz que vai nos ajudar, mas não ajuda. Mas também existe um bom, quando o fingimento nos leva à realidade. Quando você não está se sentindo muito amigável, mas sabe que deveria sê-lo, em geral a melhor coisa a fazer é adotar modos agradáveis e se comportar como se fosse uma pessoa melhor do que realmente é. Em poucos minutos, como todos sabemos por experiência própria, passará a se sentir, de fato, mais amistoso. Com muita freqüência, a única maneira de adquirir uma qualidade consiste em comportar-se como se já a tivesse. E por isso que as brincadeiras infantis são tão importantes. As crianças fingem ser adultos - brincando de soldado e de dona-de-casa. Estão sempre retesando os músculos e afiando a inteligência, de modo que, fingindo ser adultos, acabam tornando-se adultos de verdade.
No momento em que você se dá por si e diz "Aqui estou, nos trajes de Cristo", é bem provável que vislumbre de imediato algum modo pelo qual o fingimento possa deixar de ser tão fingido e se torne mais real. Flagrará, por exemplo, diversos pensamentos passando pela sua mente, pensamentos que não deveriam ocorrer a um filho de Deus. Ora, pare de pensá-los. Ou senão perceberá que, em vez de estar orando, deveria estar na sala escrevendo uma carta ou ajudando sua esposa com a louça. Ora, faça isso.
Você já entendeu o que está acontecendo. O próprio Cristo, Filho de Deus, que é homem (como você) e Deus (como seu Pai), está na verdade a seu lado e já desde aquele momento começa a transformar seu fingimento em realidade. Esta não é simplesmente uma maneira rebuscada de dizer que a sua consciência está lhe ditando o que fazer. Se você simplesmente perguntar à consciência o que deve fazer, terá uma resposta; se recordar que está sob as vestes de Cristo, terá outra resposta bem diferente. Há uma porção de coisas que sua consciência não vai achar especialmente erradas (especialmente coisas que passam pela sua cabeça), mas que você percebe de imediato que são inaceitáveis para quem faz um esforço sério para ser como o Cristo. Você não está mais pensando simplesmente em certo e errado; está tentando contrair a boa infecção de uma Pessoa. E uma atividade mais próxima da pintura de um quadro que da obediência a um código de regras. E o curioso é que, de um lado, ela é bem mais difícil que a obediência, mas, de outro, é muito mais fácil.
O verdadeiro Filho de Deus está ao seu lado. Ele está começando a transformar você em algo semelhante a ele. Está começando, por assim dizer, a "injetar" seu tipo de vida e pensamento, sua zoé, em você; está começando a transformar o soldadinho de chumbo num homem vivo. A parte de você que não gosta disso é a parte que ainda é feita de chumbo.
Alguns de vocês podem achar que isto está muito distante de suas experiências pessoais. Talvez digam: "Nunca senti a presença invisível de Cristo a meu lado me ajudando, mas várias vezes fui ajudado por outros seres humanos." Mal comparando, é como a mulher que, na Primeira Guerra, disse que não se importava com uma possível carestia de pão, pois em sua casa só comiam torradas. Se não houver pão, não haverá torrada. Da mesma forma, sem a ajuda de Cristo, os outros seres humanos também não vão nos ajudar. Ele opera em nós de diversas maneiras: não apenas dentro dos limites do que chamamos de "vida religiosa", mas também por meio da natureza, do nosso próprio corpo, dos livros, às vezes inclusive mediante experiências que poderiam ser vistas (na hora em que ocorreram) como anticristãs. Quando um jovem que freqüenta a igreja de forma rotineira se dá conta de que realmente não acredita no cristianismo e pára de freqüentá-la - pressupondo que se trate de uma atitude honesta e sincera, e não de algo que ele faz só para aborrecer os pais -, o Espírito de Cristo está mais próximo dele do que jamais esteve antes - pressupondo que tomou essa atitude de coração, e não para incomodar os seus pais. Porém, acima de tudo, Cristo opera em nós através dos outros seres humanos, e neles através de nós.
Os seres humanos são espelhos ou "portadores" de Cristo para os outros seres humanos. Às vezes, portado![]()
res inconscientes. A "boa infecção" pode ser transmitida até mesmo pelos que não foram infectados. Certas pessoas que não eram cristas me ajudaram a abraçar o cristianismo. Em geral, porém, são os que conhecem o Cristo que o levam às outras pessoas. Esse é o motivo pelo qual a Igreja é tão importante - o corpo inteiro dos cristãos, que revelam o Cristo uns aos outros. Pode-se dizer que, quando dois fiéis juntos seguem Jesus Cristo, o cristianismo não se fortalece apenas em dobro, comparado ao tempo em que os dois o seguiam separados, mas sim dezesseis vezes.
Não se esqueça de uma coisa: é natural que uma criança de colo, a princípio, beba o leite do seio materno sem saber que quem lhe dá o leite é sua mãe. É igualmente natural que vejamos o homem que nos ajuda sem perceber o Cristo por trás dele. Porém, não devemos permanecer bebês para sempre. Temos de crescer e reconhecer o verdadeiro Doador. Seria loucura não fazer isso, pois, nesse caso, tudo o que nos restaria seria confiar apenas em seres humanos como nós, o que nos levaria à decepção. Os melhores entre eles cometem erros, e todos estão fadados à morte. Devemos ser gratos a todas as pessoas que nos ajudaram, devemos honrá-las e amá-las. Mas nunca, nunca deposite toda a sua fé num ser humano, mesmo que seja a melhor e a mais sábia pessoa do mundo. Existe uma porção de coisas interessantes que você pode fazer com areia; mas não vá construir uma casa sobre ela.
Nesse ponto começamos a entender o que o Novo Testamento quer dizer quando assevera que os cristãos "nascem de novo", que "se revestem de Cristo", que Cristo "é formado em nós" e que aos poucos passamos a "ter a mente de Cristo".
Devemos repelir a idéia de que tudo isso não passa de uma forma figurada de dizer que o cristão é aquele que lê os ensinamentos de Cristo e os segue, como o homem comum que lê Platão ou Marx e tenta seguir o que eles disseram. O que o Novo Testamento pretende é bem mais que isso: que uma Pessoa real, o Cristo, aqui e agora, no aposento em que você ora, está fazendo algo em você. E não se trata apenas de um homem bom que morreu há dois mil anos. Trata-se de um Homem vivo, ainda tão homem quanto você e ainda tão divino quanto era quando criou o mundo, que realmente chega para interferir em seu eu mais profundo, para matar em você o homem velho e substituí-lo pelo tipo de alma que ele mesmo tem. No início, ele só faz isso em alguns momentos. Depois, por períodos mais prolongados. Por fim, se tudo corre bem, transforma-o permanentemente num ser de espécie diferente e nova, num pequeno Cristo, num ser que, à sua humilde maneira, possui a mesma espécie de vida que Deus, comungando de seu poder, de sua felicidade, do seu saber e de sua eternidade. E logo descobrimos duas outras coisas.
(1) Passamos a notar não apenas nossos atos pecaminosos particulares, mas nossa atitude pecaminosa em geral; ficamos incomodados não apenas com o que fazemos, mas com o que somos. Isso pode ser um pouco difícil de compreender, e assim vou tentar explicá-lo a partir da minha experiência pessoal. Nas minhas orações noturnas, quando tento contabilizar os pecados do dia, nove em dez vezes pequei contra a caridade: pelo acabrunhamento, pela irritação, pelo escárnio, pelo desdém ou pelo destempero. A desculpa que surge de imediato em minha mente é que a provocação foi súbita e inesperada demais; fui pego com a guarda baixa, não tive tempo para me prevenir. Isso até pode servir como atenuante para aqueles atos particulares, que seriam muitíssimo piores se cometidos de forma deliberada e premeditada. Por outro lado, será que o que um homem faz quando é pego com a guarda baixa não é o melhor sinal de que tipo de homem ele é na realidade? Não é a verdade que sempre se evidencia quando o homem não tem tempo de vestir seu disfarce? Se existem ratos no porão, a melhor maneira de apanhá-los é entrando no local de sopetão. A entrada repentina não cria os ratos, apenas os impede de se esconder. Da mesma forma, a rapidez da provocação não faz de mim um homem mal-humorado; simplesmente mostra o quão mal-humorado eu efetivamente sou. O porão está sempre cheio de ratos, mas, se chegamos fazendo barulho, eles têm tempo de buscar um esconderijo antes de acendermos a luz. Pelo jeito, os ratos do ressentimento e da vingança moram no porão da minha alma. Ora, esse porão não está ao alcance da minha vontade consciente. Posso controlar meus atos em certa medida, mas não tenho controle direto sobre meu temperamento. Se (como eu disse antes) o que mais importa é o que somos, não o que fazemos - se, com efeito, o que fazemos é importante sobretudo na medida em que revela o que somos -, a conclusão inescapável a que chego é que a mudança mais urgente a que devo me submeter é uma mudança que meus esforços diretos e voluntários não podem realizar. Isso vale também para as minhas boas ações. Quantas delas foram praticadas pelos motivos corretos? Quantas foram feitas por medo do que os outros iriam pensar ou por desejo de me exibir? Quantas delas não surgiram de uma espécie de teimosia ou senso de superioridade que, em circunstâncias diferentes, me levariam a cometer atos abomináveis? Não consigo, pelo esforço moral direto, dar motivos mais nobres às minhas ações. Depois dos primeiros passos na vida cristã, nos damos conta de que tudo o que realmente precisa mudar na alma só pode ser feito por Deus. E isso nos leva a algo que pode ter dado motivo a mal-entendidos na linguagem que usei até aqui.
(2) Quem me ouviu falar até agora deve ter ficado com a impressão de que somos nós que fazemos tudo. Na verdade, como é óbvio, é Deus que faz tudo. Nós, na melhor das hipóteses, permitimos que ele o faça. Num certo sentido, até mesmo o fingimento de que falamos é Deus quem o faz. O Deus tripessoal, por assim dizer, vê diante de si um animal humano egocêntrico, ganancioso, ressentido e rebelde. Mas diz: "Vamos fazer de conta que esta não é uma mera criatura, mas nosso filho. Na medida em que é um homem, é como o Cristo, que se fez homem. Vamos fazer de conta que essa criatura também se parece com ele em espírito. Vamos tratá-la como se ela fosse o que não é. Vamos fingir tudo isso para que o fingido se torne o real." Deus olha para você como se você fosse um pequeno Cristo. O Cristo está de pé a seu lado para operar essa transformação em você. Sei que essa idéia de um divino faz-de-conta pode soar estranha num primeiro momento. Mas será ela tão estranha assim? Não é desse modo que as coisas mais elevadas sempre elevam as mais baixas? Para ensinar o bebê a falar, a mãe fala com ele como se ele pudesse entendê-la. Tratamos nossos cães como se fossem "quase humanos", e é por isso que eles realmente se tornam quase humanos no final.

