" SE VIVERMOS E PREGARMOS O EVANGELHO COM A MESMA SIMPLICIDADE COM A QUAL ELE FOI VIVIDO E APRESENTADO POR JESUS AOS HOMENS, ELE CONTINUARÁ SENDO TRANSFORMADOR E EFICÁZ EM SEU EFEITO PRINCIPAL " - Parte 31
C. S. Lewis
CRISTIANISMO PURO E SIMPLES
Parte 31 A
BOAS PESSOAS OU NOVAS CRIATURAS
Ele estava falando sério. Os que se colocam em suas mãos serão perfeitos como ele é perfeito — perfeitos em amor, em sabedoria, em alegria, em beleza e em imortalidade. A mudança não se completará nesta vida, pois a morte é um elemento importante do tratamento. Não se sabe o quanto o processo de transformação estará avançado na hora da morte de cada cristão.
Acho que chegou a hora certa para responder a uma pergunta que muitas vezes se coloca: se o cristianismo é verdadeiro, por que nem todos os cristãos são evidentemente melhores do que os não-cristãos? Por trás dessa pergunta existe algo perfeitamente razoável e algo que não é razoável de modo algum. O elemento razoável é o seguinte: se a conversão ao cristianismo não melhora em nada as ações exteriores de um homem — se ele continua sendo tão esnobe, tão rancoroso, tão invejoso ou tão ambicioso quanto era antes - devemos, na minha opinião, suspeitar que sua "conversão" foi, em grande medida, imaginária; e a cada avanço que a pessoa pensa ter feito depois da conversão original, é essa a prova a ser aplicada. Bons sentimentos, novas idéias e um interesse maior pela "religião" nada significam se não melhoram nosso comportamento, assim como o fato de um doente se "sentir melhor" de nada aproveita se o termômetro mostra que sua temperatura ainda está subindo. Nesse sentido, o mundo exterior tem toda razão de julgar o cristianismo pelos seus resultados. O próprio Cristo nos mandou julgar pelos resultados. A árvore é conhecida pelos seus frutos; ou, como dizem os ingleses, a prova da sobremesa está no comer. Quando nós, cristãos, nos comportamos mal ou deixamos de nos comportar bem, fazemos com que o cristianismo perca credibilidade aos olhos do mundo exterior. Os pôsteres da época da guerra nos diziam que "Palavras descuidadas custam vidas" [Careless talk costs lives]. Com a mesma verdade podemos dizer que "Vidas descuidadas custam palavras". Nossas vidas descuidadas levam o mundo exterior a falar; e nós lhe damos motivos para falar palavras que põem em dúvida a verdade do próprio cristianismo.
Mas existe um outro modo de se exigir resultados, um modo no qual o mundo exterior se mostra totalmente ilógico. As pessoas que pertencem a ele não se limitam a exigir que a vida de cada homem melhore quando ele se torna cristão; exigem também, para poder crer no cristianismo, que o mundo inteiro se lhes apresente nitidamente dividido em dois campos - o cristão e o não-cristão — e que todas as pessoas que estão no primeiro campo sejam, a qualquer momento, evidentemente melhores que todas as que estão no segundo. Por diversos motivos, isso não é nem um pouco razoável.
(1) Em primeiro lugar, a situação verdadeira do mundo é muito mais complicada. O mundo não é feito de pessoas 100 por cento cristãs e pessoas 100 por cento não-cristãs. Existem pessoas (em grande número) que estão lentamente deixando de ser cristãs, mas que ainda se chamam por esse nome; algumas delas fazem parte da liderança da Igreja. Existem outras pessoas que estão lentamente se tornando cristãs, embora ainda não se chamem por esse nome. Existem pessoas que não aceitam toda a doutrina cristã a respeito de Cristo, mas que são a tal ponto atraídas por ele que chegam a pertencer a ele num sentido muito mais profundo do que elas mesmas poderiam compreender. Existem membros de outras religiões que, pela influência secreta de Deus, são levados a concentrar-se naqueles elementos de suas religiões que concordam com o cristianismo, e que assim pertencem a Cristo sem o saber. Um budista de boa vontade, por exemplo, pode ser levado a concentrar-se cada vez mais na doutrina budista da compaixão, deixando em segundo plano os elementos doutrinais que versam sobre outras questões (embora possa ainda afirmar crer nessa doutrina como um todo). E possível que muitos dos bons pagãos que viveram antes do nascimento de Cristo tenham estado nessa situação. E, como seria de esperar, sempre existe um número infindável de pessoas que são simplesmente confusas e têm uma porção de crenças incoerentes misturadas dentro de si. Conseqüentemente, não há muita utilidade em se tentar emitir juízos sobre os cristãos e os não-cristãos considerados em seu conjunto. Vale a pena tentar comparar em conjunto os cães e os gatos, ou mesmo os homens e as mulheres, pois nesses casos não há a menor dúvida sobre quem é quem. Além disso, nenhum animal se transforma de gato em cachorro (nem lentamente nem de súbito). Mas, quando comparamos os cristãos em geral com os não-cristãos em geral, com freqüência não pensamos nas pessoas reais que conhecemos, mas em duas idéias vagas que nos foram incutidas pelos romances e notícias de jornal. Se você quiser comparar o bom ateu com o mau cristão, terá de pensar sobre dois espécimes reais que você efetivamente conheceu. Se não descermos assim aos fatos concretos, estaremos simplesmente perdendo tempo.
(2) Vamos supor que descemos aos fatos concretos e não estamos mais falando sobre um cristão e um não-cristão imaginários, mas sobre duas pessoas de verdade que moram no nosso bairro. Mesmo nesse caso, temos de cuidar para não fazer a pergunta errada. Se o cristianismo é verdadeiro, é necessário que (a) qualquer cristão seja melhor do que ele mesmo seria se não fosse cristão; e (b) todo aquele que se tornar cristão seja melhor do que era antes. Da mesmíssima maneira, se as propagandas do creme dental Sorriso de Prata são verdadeiras, é necessário que (a) qualquer um que o use tenha dentes melhores do que teria se não o usasse; e (b) se alguém começar a usá-lo, seus dentes melhorem. Mas o simples fato de que eu, que uso Sorriso de Prata mas herdei dentes ruins do meu pai e da minha mãe, não tenho dentes tão bons quanto os de um jovem africano saudável que nunca usou creme dental de espécie alguma, não prova por si mesmo que a propaganda é enganosa. Assim, a cristã srta. Bates pode ter uma língua mais maldosa que a do incréu Dick Firkin. Esse fato, por si mesmo, não nos diz se o cristianismo funciona ou não. As perguntas são as seguintes: como seria a língua da srta. Bates se ela não fosse cristã, e como seria a de Dick se ele se convertesse? Em virtude de causas naturais e da criação que tiveram, Dick e a srta. Bates têm certos temperamentos; o cristianismo propõe-se a colocar ambos os temperamentos sob nova direção se seus respectivos donos o permitirem. O que você tem o direito de perguntar é se a nova direção, caso possa assumir o controle, de fato vai melhorar o desempenho da empresa. Todos sabem que aquilo que está sendo administrado em Dick Firkin é muito melhor que na srta. Bates. Não é esse o problema. Para julgar a administração de uma fábrica, não basta considerar os produtos; é preciso considerar o maquinado. Em vista do maquinário da Fábrica A, pode ser um verdadeiro milagre que ela consiga produzir qualquer coisa; em vista do maquinário da Fábrica B, sua produção, embora grande, talvez seja bem menor do que deveria ser. Não há dúvida de que o bom administrador da Fábrica A vai instalar novas máquinas assim que puder, mas isso leva tempo. Enquanto isso, a baixa produção não prova que ele fracassou.

