" SE VIVERMOS E PREGARMOS O EVANGELHO COM A MESMA SIMPLICIDADE COM A QUAL ELE FOI VIVIDO E APRESENTADO POR JESUS AOS HOMENS, ELE CONTINUARÁ SENDO TRANSFORMADOR E EFICÁZ EM SEU EFEITO PRINCIPAL " - Parte 31

04/12/2013 10:35

C. S. Lewis

CRISTIANISMO PURO E SIMPLES

                                                                           Parte 31 A

BOAS PESSOAS OU NOVAS CRIATURAS

Ele estava falando sério. Os que se colocam em suas mãos serão perfeitos como ele é perfeito — perfeitos em amor, em sabedoria, em alegria, em beleza e em imor­talidade. A mudança não se completará nesta vida, pois a morte é um elemento importante do tratamento. Não se sabe o quanto o processo de transformação estará avan­çado na hora da morte de cada cristão.

Acho que chegou a hora certa para responder a uma pergunta que muitas vezes se coloca: se o cristianis­mo é verdadeiro, por que nem todos os cristãos são evi­dentemente melhores do que os não-cristãos? Por trás des­sa pergunta existe algo perfeitamente razoável e algo que não é razoável de modo algum. O elemento razoável é o seguinte: se a conversão ao cristianismo não melhora em nada as ações exteriores de um homem — se ele con­tinua sendo tão esnobe, tão rancoroso, tão invejoso ou tão ambicioso quanto era antes - devemos, na minha opinião, suspeitar que sua "conversão" foi, em grande medida, imaginária; e a cada avanço que a pessoa pen­sa ter feito depois da conversão original, é essa a prova a ser aplicada. Bons sentimentos, novas idéias e um in­teresse maior pela "religião" nada significam se não me­lhoram nosso comportamento, assim como o fato de um doente se "sentir melhor" de nada aproveita se o termô­metro mostra que sua temperatura ainda está subindo. Nesse sentido, o mundo exterior tem toda razão de jul­gar o cristianismo pelos seus resultados. O próprio Cris­to nos mandou julgar pelos resultados. A árvore é co­nhecida pelos seus frutos; ou, como dizem os ingleses, a prova da sobremesa está no comer. Quando nós, cris­tãos, nos comportamos mal ou deixamos de nos com­portar bem, fazemos com que o cristianismo perca cre­dibilidade aos olhos do mundo exterior. Os pôsteres da época da guerra nos diziam que "Palavras descuidadas custam vidas" [Careless talk costs lives]. Com a mesma verdade podemos dizer que "Vidas descuidadas custam palavras". Nossas vidas descuidadas levam o mundo ex­terior a falar; e nós lhe damos motivos para falar palavras que põem em dúvida a verdade do próprio cristianismo.

Mas existe um outro modo de se exigir resultados, um modo no qual o mundo exterior se mostra totalmen­te ilógico. As pessoas que pertencem a ele não se limi­tam a exigir que a vida de cada homem melhore quando ele se torna cristão; exigem também, para poder crer no cristianismo, que o mundo inteiro se lhes apresente nitidamente dividido em dois campos - o cristão e o não-cristão — e que todas as pessoas que estão no primei­ro campo sejam, a qualquer momento, evidentemente melhores que todas as que estão no segundo. Por diver­sos motivos, isso não é nem um pouco razoável.

 

(1) Em primeiro lugar, a situação verdadeira do mun­do é muito mais complicada. O mundo não é feito de pessoas 100 por cento cristãs e pessoas 100 por cento não-cristãs. Existem pessoas (em grande número) que estão lentamente deixando de ser cristãs, mas que ain­da se chamam por esse nome; algumas delas fazem parte da liderança da Igreja. Existem outras pessoas que estão lentamente se tornando cristãs, embora ainda não se cha­mem por esse nome. Existem pessoas que não aceitam toda a doutrina cristã a respeito de Cristo, mas que são a tal ponto atraídas por ele que chegam a pertencer a ele num sentido muito mais profundo do que elas mes­mas poderiam compreender. Existem membros de ou­tras religiões que, pela influência secreta de Deus, são levados a concentrar-se naqueles elementos de suas religiões que concordam com o cristianismo, e que assim pertencem a Cristo sem o saber. Um budista de boa vontade, por exemplo, pode ser levado a concentrar-se cada vez mais na doutrina budista da compaixão, dei­xando em segundo plano os elementos doutrinais que versam sobre outras questões (embora possa ainda afir­mar crer nessa doutrina como um todo). E possível que muitos dos bons pagãos que viveram antes do nasci­mento de Cristo tenham estado nessa situação. E, como seria de esperar, sempre existe um número infindável de pessoas que são simplesmente confusas e têm uma por­ção de crenças incoerentes misturadas dentro de si. Con­seqüentemente, não há muita utilidade em se tentar emi­tir juízos sobre os cristãos e os não-cristãos considera­dos em seu conjunto. Vale a pena tentar comparar em conjunto os cães e os gatos, ou mesmo os homens e as mulheres, pois nesses casos não há a menor dúvida so­bre quem é quem. Além disso, nenhum animal se trans­forma de gato em cachorro (nem lentamente nem de súbito). Mas, quando comparamos os cristãos em geral com os não-cristãos em geral, com freqüência não pen­samos nas pessoas reais que conhecemos, mas em duas idéias vagas que nos foram incutidas pelos romances e notícias de jornal. Se você quiser comparar o bom ateu com o mau cristão, terá de pensar sobre dois espécimes reais que você efetivamente conheceu. Se não descermos assim aos fatos concretos, estaremos simplesmente perdendo tempo.

 

(2)  Vamos supor que descemos aos fatos concretos e não estamos mais falando sobre um cristão e um não-cristão imaginários, mas sobre duas pessoas de verdade que moram no nosso bairro. Mesmo nesse caso, temos de cuidar para não fazer a pergunta errada. Se o cristia­nismo é verdadeiro, é necessário que (a) qualquer cristão seja melhor do que ele mesmo seria se não fosse cris­tão; e (b) todo aquele que se tornar cristão seja melhor do que era antes. Da mesmíssima maneira, se as propa­gandas do creme dental Sorriso de Prata são verdadei­ras, é necessário que (a) qualquer um que o use tenha dentes melhores do que teria se não o usasse; e (b) se alguém começar a usá-lo, seus dentes melhorem. Mas o simples fato de que eu, que uso Sorriso de Prata mas herdei dentes ruins do meu pai e da minha mãe, não te­nho dentes tão bons quanto os de um jovem africano saudável que nunca usou creme dental de espécie alguma, não prova por si mesmo que a propaganda é enganosa. Assim, a cristã srta. Bates pode ter uma língua mais mal­dosa que a do incréu Dick Firkin. Esse fato, por si mes­mo, não nos diz se o cristianismo funciona ou não. As perguntas são as seguintes: como seria a língua da srta. Bates se ela não fosse cristã, e como seria a de Dick se ele se convertesse? Em virtude de causas naturais e da criação que tiveram, Dick e a srta. Bates têm certos tem­peramentos; o cristianismo propõe-se a colocar ambos os temperamentos sob nova direção se seus respectivos donos o permitirem. O que você tem o direito de per­guntar é se a nova direção, caso possa assumir o con­trole, de fato vai melhorar o desempenho da empresa. Todos sabem que aquilo que está sendo administrado em Dick Firkin é muito melhor que na srta. Bates. Não é esse o problema. Para julgar a administração de uma fábrica, não basta considerar os produtos; é preciso con­siderar o maquinado. Em vista do maquinário da Fá­brica A, pode ser um verdadeiro milagre que ela consiga produzir qualquer coisa; em vista do maquinário da Fá­brica B, sua produção, embora grande, talvez seja bem menor do que deveria ser. Não há dúvida de que o bom administrador da Fábrica A vai instalar novas máquinas assim que puder, mas isso leva tempo. Enquanto isso, a baixa produção não prova que ele fracassou.