" SE VIVERMOS E PREGARMOS O EVANGELHO COM A MESMA SIMPLICIDADE COM A QUAL ELE FOI VIVIDO E APRESENTADO POR JESUS AOS HOMENS, ELE CONTINUARÁ SENDO TRANSFORMADOR E EFICÁZ EM SEU EFEITO PRINCIPAL " - Parte final

18/12/2013 11:10

C. S. Lewis

CRISTIANISMO PURO E SIMPLES

                                                                          Parte Final

 

AS NOVAS CRIATURAS

No capítulo anterior, comparei a obra crística de criar novas criaturas com o processo pelo qual um cavalo se torna uma criatura alada. Usei esse exemplo extremo para deixar bem claro que aquilo de que se trata não é uma simples melhora, mas uma transformação. A coisa que mais se aproxima disso no mundo da natureza são as transformações notáveis que podemos provocar nos in­setos quando projetamos certos raios sobre eles. Há quem pense que foi assim que ocorreu a evolução. As altera­ções das quais esse processo depende poderiam ter sido produzidas por raios vindos do espaço sideral. (É claro que, quando as alterações passam a existir, passam tam­bém a sofrer a influência daquilo que se chama "seleção natural": as alterações úteis permanecem e as demais são extirpadas.)

Talvez um homem moderno possa compreender melhor a idéia cristã se a entender no contexto da evo­lução. Hoje em dia, todos já ouviram falar da evolução (embora haja homens instruídos que não creiam nela): todos já tiveram de ouvir que o homem evoluiu a par­tir das formas inferiores de vida. Conseqüentemente, as pessoas amiúde se perguntam: "Qual será o próximo passo? Quando aparecerá o ser que virá depois do ho­mem?" Escritores cheios de imaginação tentam às vezes desenhar a figura desse próximo passo - o "super-homem", pois assim o chamam; mas, no geral, só conse­guem esboçar os contornos de um ser muito pior do que o homem que conhecemos, e depois tentam compen­sar esse fato dando-lhe novos pares de braços e pernas. Mas suponhamos que o próximo passo seja algo muito mais dessemelhante dos passos anteriores do que ima­ginam esses escritores. Não é provável que assim seja? Há milhares de séculos, criaturas gigantescas e dotadas de cascos pesadíssimos surgiram sobre a Terra. Se na­quela época houvesse alguém que observasse o curso da evolução, provavelmente pensaria que ela caminhava na direção de cascos cada vez mais pesados. Estaria erra­do, porém. O futuro tinha uma carta na manga, uma car­ta que, naquele momento, não poderia ter sido prevista de modo algum. Estava a ponto de gerar pequenos seres nus, sem cascos nem espinhos, mas dotados de cérebros melhores: seres que, com esses cérebros, viriam a domi­nar o planeta inteiro. Não só teriam mais poder que os monstros pré-históricos como teriam um novo tipo de poder. O passo seguinte não só foi diferente como tam­bém foi marcado por um novo tipo de diferença. A cor­rente da evolução não seguiria a direção em que nosso hipotético observador a via fluir: na verdade, estava a ponto de fazer uma curva acentuada.

Ora, me parece que a maioria das conjecturas po­pulares sobre o próximo passo estão cometendo o mes­mo tipo de erro. As pessoas vêem (ou pelo menos pen­sam que vêem) os homens desenvolvendo um cérebro gigantesco e ampliando o domínio sobre a natureza. E, como pensam que a corrente está fluindo nessa dire­ção, imaginam que continuará seguindo o mesmo curso. Mas não posso deixar de pensar que o próximo passo será completamente novo e tomará uma direção com a qual ninguém teria sonhado. Se não fosse assim, não poderia propriamente ser chamado um próximo passo. Penso que ele não só será diferente como também será caracterizado por um novo tipo de diferença. Não con­jectura uma simples mudança, mas um novo método de produzir a mudança. Ou, para propor um paradoxo, conjectura que o próximo estágio da evolução não será de modo algum um estágio evolutivo: penso que a pró­pria evolução será superada enquanto método de produ­ção da mudança. E, por fim, não me surpreenderei se, quando isso acontecer, pouca gente perceber que está acontecendo.

Ora, se pretendemos continuar usando essa lingua­gem, a idéia cristã é que esse próximo passo já foi dado. E, de fato, ele é completamente novo. Não é uma mu­dança de homens cerebrais para homens mais cerebrais ainda: é uma mudança que parte numa direção com­pletamente diferente — de criaturas de Deus para filhos de Deus. O primeiro caso dessa mudança surgiu na Pa­lestina há dois mil anos. Em certo sentido, a mudança não é uma "evolução" de modo algum. Não é algo que nasce do processo natural dos acontecimentos, mas algo que entra na natureza vindo de fora dela. Porém, não deveríamos esperar outra coisa. Foi do estudo do pas­sado que chegamos à nossa idéia de "evolução". Se de fato existem novidades à nossa espera, é evidente que nos­sa idéia, baseada no passado, não poderia prevê-las. E na verdade esse próximo passo é diferente dos anterio­res não só por vir de fora da natureza, mas por vários outros motivos também.

(1) Ele não se propaga pela reprodução sexual. Por que nos surpreender diante disso? Houve tempo em que os sexos não existiam; o desenvolvimento se dava por outros métodos. Conseqüentemente, é de esperar que ve­nha um tempo em que as relações sexuais não existam mais, ou senão (como já está de fato acontecendo) um tempo em que, embora elas continuem existindo, dei­xem de ser os principais canais do desenvolvimento.

(2)  Nos estágios anteriores, os organismos vivos não tinham escolha: eram obrigados ou praticamente obri­gados a dar o passo seguinte. Em geral, o progresso era algo que lhes acontecia, não algo que eles mesmos em­preendiam. Porém, este passo novo, o passo que nos con­duz da condição de criaturas à condição de filhos, é vo­luntário. E voluntário pelo menos em um sentido. Não é voluntário porque nós, por nossa própria conta, po­deríamos tê-lo dado ou tê-lo mesmo imaginado; mas é voluntário na medida em que, quando nos é oferecido, podemos recusá-lo. Se quisermos, podemos regredir; po­demos recalcitrar e deixar que a nova humanidade vá em frente sem a nossa presença.

(3)  Eu disse que Cristo foi o "primeiro caso" do ho­mem novo. Mas é claro que ele é muito mais que isso. Não é simplesmente um homem novo, um espécime da espécie, mas o homem novo. E a origem, o centro e a vida de todos os homens novos. Entrou de livre e es­pontânea vontade no universo criado, trazendo consigo a zoé, a vida nova. (Nova para nós, evidentemente: no lu­gar de onde vem, a zoè existe desde toda a eternidade.). E ele não a transmite por hereditariedade, mas por aqui­lo que chamei de "boa infecção". Todos os que a rece­bem adquirem-na pelo contato pessoal com ele. Os ou­tros homens se tornam "novos" por estar "nele".

(4) Esse passo se dá numa velocidade diferente da dos passos anteriores. Comparada com o desenvolvimen­to do homem neste planeta, a difusão do cristianismo pela raça humana parece dar-se na velocidade do raio — dois mil anos são quase nada em comparação com a his­tória do universo. (Nunca se esqueça de que nós ainda somos os "primitivos cristãos". Temos a esperança de que as atuais divisões em nosso seio, inúteis e malignas, sejam uma doença da infância: nossos dentes de leite ain­da estão nascendo. Sem dúvida, o mundo exterior pen­sa o contrário. Pensa que estamos morrendo de velhice. Mas não é a primeira vez que esse pensamento lhe ocor­re. Já lhe ocorreu pensar que o cristianismo estava mor­rendo por causa das perseguições externas, da corrup­ção interna, da ascensão do islamismo, da ascensão das ciências físicas, do surgimento dos grandes movimen­tos revolucionários anticristãos. Em cada um desses casos, porém, o mundo se decepcionou. Sua primeira decep­ção foi a crucificação: o Homem ressuscitou. Em certo sentido - e sei muito bem que isso deve parecer terri­velmente injusto aos olhos do mundo -, esse mesmo fato vem se repetindo desde então. O mundo continua matando aquilo que Jesus fundou; e a cada vez, quando está alisando a terra por cima da cova, ouve dizer de re­pente que aquilo ainda está vivo e surgiu de novo em al­gum outro lugar. Não admira que o mundo nos odeie.) (5) Desta vez, o que está em jogo é algo muito maior. Se retrocedesse aos passos anteriores, uma criatura per­deria, na pior das hipóteses, seus poucos anos de vida nesta Terra; muitas vezes, nem isso. Retrocedendo nes­te passo, perdemos uma recompensa infinita (no sentido mais estrito da palavra). Isso porque o momento críti­co chegou. No decorrer dos séculos, Deus conduziu a natureza ao ponto de produzir criaturas que podem (se quiserem) ser abstraídas da própria natureza e transfor­madas em "deuses". Será que elas deixarão que isso acon­teça? De certo modo, isso se assemelha à crise do nasci­mento. Até o momento em que nos levantamos e segui­mos a Cristo, ainda somos elementos da natureza e re­pousamos no útero da nossa grande mãe. A gestação foi prolongada, dolorosa e cheia de ansiedade, mas agora atingiu o clímax. O grande momento chegou. Tudo está pronto. Até o Médico já está aqui. Será que o parto vai "transcorrer sem problemas"? Mas é claro que existe uma diferença importante entre esse parto e um parto comum. No parto comum, o bebê não tem muita esco­lha; neste, ele tem. Fico a pensar o que um bebê comum faria se tivesse escolha. Talvez ele preferisse permanecer na escuridão quente e segura do útero. Evidentemente, para ele o útero seria sinônimo de segurança. Mas ele estaria enganado; se lá permanecesse, morreria.

Sob esse ponto de vista, a coisa já aconteceu: o novo passo já foi dado e ainda está sendo dado. As novas cria­turas já estão espalhadas, aqui e ali, por toda a superfí­cie da Terra. Algumas, como eu mesmo admiti, ainda não são reconhecíveis, mas outras podem ser reconhe­cidas. De quando em vez, encontramos uma delas. As próprias vozes e rostos delas são diferentes dos nossos: mais fortes, mais tranqüilos, mais felizes, mais radiantes. Elas partem de onde a maioria de nós mal consegue chegar. Como eu disse, são reconhecíveis; mas você pre­cisa saber o que procurar. Não se assemelham em nada à idéia de "pessoas religiosas" que você formou a partir de suas leituras. Não chamam a atenção para si. Você tende a pensar que está sendo gentil com elas, quando na verdade são elas que estão sendo gentis com você. Amam-no mais do que os outros homens, mas precisam menos de você. (Aliás, temos de superar a vontade de nos sentirmos necessários: em certas pessoas "boazinhas", especialmente mulheres, essa é a tentação mais difícil de vencer.) Em geral, parecem ter tempo de sobra; fica­mos a pensar de onde vem esse tempo. Depois de reco­nhecer a primeira dessas novas criaturas, você reconhece­rá com muito mais facilidade a segunda. E tenho a forte suspeita (mas como vou saber com certeza?) de que elas mesmas se reconhecem umas às outras de modo imediato e infalível, por cima de todas as barreiras de cor, sexo, classe social, idade e até mesmo de credo. Nesse senti­do, santificar-se é como entrar numa sociedade secreta. No mínimo, no mínimo, deve ser uma coisa extrema­mente divertida.

Mas você não deve imaginar que as novas criaturas são todas "iguais" no sentido comum da palavra. Muitas coisas que eu disse neste último livro podem levá-lo a su­por que assim seja. Para nos tornarmos novas criaturas, temos de perder o que agora chamamos de "nós mes­mos". Temos de sair de nós mesmos e entrar em Cristo. A vontade dele tem de ser a nossa e temos de pensar seus pensamentos; temos de "ter a mente de Cristo", como diz a Bíblia. E, se Cristo é um só e tem de estar "dentro" de todos nós, acaso não ficaremos todos iguais? Parece que sim, com certeza; mas, na verdade, não é assim.

Neste caso, é difícil encontrar um exemplo que ilus­tre aquilo de que se trata, pois não existem duas coisas que guardem entre si uma relação semelhante à que o Criador tem com uma de suas criaturas. Mas vou apre­sentar, com certa hesitação, dois exemplos extremamen­te imperfeitos que talvez nos dêem uma vaga idéia da verdade. Imagine um bando de pessoas que sempre vi­veu na mais completa escuridão. Você chega e tenta ex­plicar-lhes como é a luz. Pode tentar dizer-lhes que, se eles saírem na luz, a mesma luz incidirá sobre eles todos, eles a refletirão e assim se tornarão o que chamamos de "visíveis". Não seria perfeitamente possível que eles imaginassem que, como todos receberiam a mesma luz e reagiriam a ela do mesmo modo (ou seja, a refletiriam), ficariam todos com a mesma aparência? Mas você e eu sabemos que, na verdade, a luz mostra ou evidencia o quanto todos eles são diferentes. Ou senão imagine uma pessoa que não conhecesse o sal. Você lhe dá uma pi­tada para experimentar e ela sente um sabor específico, forte e pungente. Você então lhe diz que, no seu país, as pessoas usam o sal como tempero de todos os pra­tos. Não poderia ela responder: "Mas, nesse caso, todos os seus pratos devem ficar exatamente com o mesmo gosto, pois o sabor desse pó branco que você me deu é tão forte que deve matar todos os outros sabores." Po­rém, você e eu sabemos que o sal tem um efeito diame­tralmente oposto. Longe de "matar" o sabor do ovo, da dobradinha e do repolho, ele na verdade o realça. Os ali­mentos só mostram seu verdadeiro sabor quando você lhes acrescenta o sal. (E claro que, como eu disse, esse exemplo não é muito bom, pois, no fim das contas, de fato é possível abafar os outros sabores pelo excesso de sal, ao passo que o sabor de uma personalidade huma­na não pode ser abafado pelo excesso de Cristo. Estou me esforçando ao máximo.)

O que acontece com Cristo e conosco é algo seme­lhante a isso. Quanto mais tiramos do caminho aquilo que agora chamamos de "nós mesmos" e deixamos que ele tome conta de nós, tanto mais nos tornamos aqui­lo que realmente somos. Ele é tão grande que milhões e milhões de "pequenos Cristos", todos diferentes, não se­rão suficientes para expressá-lo plenamente. Foi ele que os fez a todos. Ele inventou — como um escritor inventa os personagens de um romance - todos os homens di­ferentes que vocês e eu devemos ser. Nesse sentido, nos­sos verdadeiros seres estão todos nele, esperando por nós. De nada vale procurar "ser eu mesmo" sem ele. Quan­to mais resisto a ele e tento viver sozinho, tanto mais me deixo dominar por minha hereditariedade, minha criação, meus desejos naturais e o meio em que vivo. Na verdade, aquilo que chamo com tanto orgulho de "eu mesmo" é simplesmente o ponto de encontro de miríades de cadeias de acontecimentos que não foram ini­ciadas por mim e não poderão ser encerradas por mim. Os desejos que chamo de "meus" são meramente os de­sejos vomitados pelo meu organismo físico, incutidos em mim pelo pensamento de outros homens ou mes­mo sugeridos a mim pelos demônios. Ovos, álcool e uma boa noite de sono: eis aí a verdadeira origem da mi­nha decisão de beijar a moça sentada à minha frente na cabine do trem, decisão que, para fazer uma vênia a mim mesmo, considero pessoalíssima e maduramente refletida. A propaganda será a verdadeira origem de mi­nhas idéias políticas, que considero próprias e específi­cas. Em meu estado natural, não sou tanto uma "pes­soa" quanto gosto de pensar que sou: a maior parte da­quilo que chamo de "eu" pode ser facilmente explicada por outros fatores. E só quando me volto para Cristo, quando me entrego à personalidade dele, que começo a ter uma verdadeira personalidade minha.

No começo eu disse que há Personalidades em Deus. Agora vou mais longe e afirmo que em nenhum outro lugar há personalidades verdadeiras. Você não terá um eu verdadeiro enquanto não entregar a ele o seu eu. A igualdade ou semelhança existe sobretudo entre os mais "naturais" dos homens, não entre os que se rendem a Cristo. Quão monótona é a semelhança que iguala to­dos os grandes tiranos e conquistadores; quão gloriosa é a diferença dos santos!

Mas o eu precisa ser entregue de verdade. Você tem, por assim dizer, de lançá-lo fora "às cegas". Cristo de fato lhe dará uma personalidade nova, mas não é por causa disso que você deve buscá-lo. Enquanto estiver preocupado com sua personalidade, você não estará ca­minhando na direção dele de modo algum. O primei­ro passo consiste em procurar esquecer completamen­te de si mesmo. Seu novo eu, seu eu verdadeiro (que é de Cristo e também é seu, e é seu justamente porque é dele) não surgirá enquanto você o estiver procurando. Só surgirá quando o objeto de sua procura for ele. Aca­so isso parece estranho? Saiba que o mesmo princípio vigora em assuntos muito mais terrenos. Mesmo na vida social, você jamais causará boa impressão a outras pes­soas enquanto não parar de pensar na impressão que está causando. Mesmo na literatura e na arte, ninguém que se preocupe especificamente com a originalidade pode­rá jamais ser original; ao passo que, se você tentar falar a verdade (sem ligar a mínima a quantas vezes a mesma verdade já foi declarada no passado), nove vezes em dez será original sem percebê-lo. Esse princípio rege a vida inteira, do começo ao fim. Entregue-se, pois assim você encontrará a si mesmo. Perca a sua vida para salvá-la. Submeta-se à morte, à morte cotidiana de suas ambições e dos seus maiores desejos e, no fim, à morte do seu cor­po inteiro: submeta-se a ela com todas as fibras do seu ser, e você encontrará a vida eterna. Não guarde nada para si. Nada que você não deu chegará a ser verdadei­ramente seu. Nada que não tiver morrido chegará a ser ressuscitado dos mortos. Se você buscar a si mesmo, no fim só encontrará o ódio, a solidão, o desespero, a fúria, a ruína e a podridão. Se buscar a Cristo, o encontrará; e, junto com ele, encontrará todas as coisas.

FIM